quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A ARTE DE SER FELIZ




HOUVE um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.

HOUVE um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.

HOUVE um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, a às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.

HOUVE um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.

MAS, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


Cecília Meireles

domingo, 15 de novembro de 2009

















MORRE O PATRIARCA
(a meu pai, depois de sua morte-março de 1995)
Mesmo o mais frondoso carvalho
Enfraquece com a ação do tempo
E à menor tempestade
Vem abaixo mostrando sua fraqueza.
Eras forte como um carvalho
Altivo, belo, arrogante
Mas o tempo te fez fraco
Te deixando à mercê das intempéries.
Perdeste a arrogância
Mas mantiveste a altivez
Com dignidade até o fim.

Até o grande carvalho
Recebe a carícia do vento
Tu não quiseste carícias
Afastastes todos de ti
Te fechaste em teu mundo
Povoado de deuses e demônios
Que te torturavam
Com o fogo do inferno.

Onde estarás agora?
No céu ou no inferno?
Não importa mais nada
Pois em tua dureza planejada
Levaste um pedaço
Do nosso mundo.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

RECEITA













Pelo mar, pela areia
avisto o mar,
olha uma sereia

( não, sereia com areia nao)


Pelo mar, pela terra
sinta o ar,
veja a caravela

( não, ainda nao é isso)

Na praia o mar

enterra na areia
a caravela, a sereia....
( ah, desisto !! )

Filipe Dias



(Pensam que é fácil fazer poesia?)

POEMA QUE EU GOSTARIA DE TER ESCRITO














Ser poeta é ser mais alto, é ser maior

FLORBELA ESPANCA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

















BRUXA
vassoura
ao alto
capa
esvoaçando
olhando o mundo
que a julga
e não a entende...
Mulher
que conhece
os segredos da alma
da natureza
e dos ciclos.

Mulher
que ama sem medo
sem pudor
faz suas próprias regras
bruxa
deusa
sacerdotisa
do amor!

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Morre Mercedes Soza, la negra



A cantora argentina Mercedes Soza faleceu no domingo, 4 de outubro de 2009, aos 74 anos. Ela estava com graves problemas renais e não resisitiu.
Mercedes era conhecida carinhosamente como la negra devido à sua ascendência indígena. Durante sua vida o destaque foi dado à sua luta contra as ditaduras e aos governos fascistas. Por isso, foi perseguida pelo governo militar da Argentina que começou em 1963 e durou até 1982. Em 1979 ela foi presa em um concerto e exilada, morando em Madrid e Paris. Em 1982 voltou à Argentina e começou a realizar concertos históricos contras as ditaduras. Seu sonho era a união latino americana, tanto nas artes como na política, criando um estado socialista.
Na música, ela renovou o modo de fazer música dos povos, trazendo pas suas canções influências dos povos indígenas, como a flauta andina e outros instrumentos e letras do folclore popular de vários países latinos.
Em 1963, Mercedes e outros músicos criaram o Manifesto do Cancioneiro Popular, que propunha novos paradigmas para a música popular, integrando as manifestações folclóricas e culturais do povo.
Junto com artistas brasileiros, como Chico Buarque de Holanda e MIlton Nascimento, La Soza pretendia criar um movimento artístico que unisse toda a América Latina. Fizeram grande concertos juntos.
Confira um pouco da obra da grande cantora no youtube.
http://www.youtube.com/

sábado, 29 de agosto de 2009

APRENDIZAGEM

FOTOS DO MEU ARQUIVO PESSOAL: Eu na faculdade, Othon, Gustavo e Vinícius, meu netos; Meus três filhos: Michele, Milena e Filipe.


Nesse dia em que completo meio século de existência posso afirmar que aprendi que:
Gosto cada vez mais de crianças: elas são inteligentes, inocentes, verdadeiras e puras!Cada vez mais procuro ser como as crianças.
A beleza de cada um e a minha não depende de grandes programas de beleza e sim de investimento na busca do equilíbrio interno.
Não posso mudar o mundo, mas nem por isso vou me conformar e deixar de lutar contra as injustiças.
Todo mundo é importante, cada pessoa tem seu universo próprio.
Eu posso contribuir para melhorar a vida de outras pessoas e a minha própria.
A nossa postura individual, a ética e as atitudes ensinam mil vezes mais que muitos discursos prontos.Se somos verdadeiros, mesmo que erremos, as pessoas saberão nos valorizar.
Se não prejudicamos ninguém deliberadamente, nem somos maldosos, sempre saberão nos perdoar.

Tudo o que fazemos para os outros com maldade sempre volta para nós.
Colhemos mesmo o que plantamos e a vida sempre mostra isso.

A minha felicidade não depende dos outros: sou eu que escolho ser ou não feliz e eu escolhi a felicidade!

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O VAMPIRO























FLAP...FLAP...FLAP...

Sangue

es
co
rren
do...
O céu escuro...
A noite profunda...

Ele vem vindo...
Deslizando pela bruma.

FLAP...FLAP...FLAP...

Com sua longa capa...
Sedento...
Sedento...
O sangue querendo...

Vem, meu Vampiro
Estou esperando
Quero sua mordida
Em meu pescoço quente
Onde o sangue borbulha.

Quero sentir o sangue
es
co
rren
do
Num frenesi de prazer
Mortal...

Não...Não vá ainda...
O momento é efêmero
Outros pescoços
Estão a esperar...

FLAP...FLAP...FLAP...

quarta-feira, 8 de julho de 2009

MICHAEL AND ME

Uma luz que muito brilha se consome rápido. E Michael Jackson brilhou muito, tanto que se consumiu rapidamente.
Michael Jackson e eu temos muita coisa em comum. Pode-se dizer que crescemos juntos uma vez que cresci ouvindo-o cantar. Também nascemos no mesmo dia, 29 de agosto. Sempre pensei que tínhamos a mesma idade quando descobri que ele era um ano mais velho que eu. Virginiano perfeccionista, não me admira que ele tenha se transformado no rei do Pop e revolucionado o mundo da música utilizando batidas do pop, do rock e da música negra.
Como bailarino foi impecável, inventando alguns passos e reinventando outros de forma a parecer que deslizava no palco. Seus shows sempre foram uma festa para os olhos e ouvidos, um deleite de prazer estético para mim.
Parecia que no palco o artista se entregava totalmente a sua arte. Parecia ainda que nesses momentos ele era feliz, encontrava um sentido para sua vida. Como ser humano, não posso dizer nada dele, mas como artista ele se dava totalmente a seu público, buscando a perfeição em tudo o que fazia.
A impressão que me passava Michael Jackson era de fragilidade. Eu o sentia com uma necessidade imensa de amor, de carinho, intuição que sua história parece comprovar. A sua vida parecia ter um imenso buraco que ele não conseguia preencher nem com a fama, nem com o dinheiro. Um homem lindo que se achava feio e vivia mexendo na aparência. Ele não conseguia se ver no espelho, não via a sua beleza. O racismo nos EUA é imensamente cruel: os artistas negros não tinham espaço e Michael ajudou a quebrar este estigma: foi o primeiro negro a ter um clipe veiculado pela MTV e isso em 1983! Que lugar atrasado!
Michael também passava muita tristeza interior. E isso me deixa triste: tão amado por muitos, tão pouco amado por aqueles que deveriam amá-lo, tão carente de amor e carinho.
Outra coisa que me deixa triste é o modo como foi usado a vida toda e até na sua morte. Transformaram-no numa coisa, uma mercadoria. Até que ponto ele tinha consciência disso e se deixou usar é que resta indagar. Será que saberemos algum
dia?












sexta-feira, 3 de julho de 2009

NOITE SEM LUA


Noite sem lua. Ruas carregadas de neblina. Numa noite como essa, parece que todos sumiram. Parece que não há ninguém na rua. Silêncio...
Uma garota caminha cambaleante em meio à névoa. Parece perdida. Estaria alcoolizada? Solitária, caminha.
Era madrugada e a garota voltava de uma festa. Com apenas quinze anos, havia ludibriado os pais para poder sair à noite e foi a uma boate. Como primeira experiência na night foi traumática: luzes piscando, pessoas rodando na pista, agarrando-se, usando drogas...Tudo lhe pareceu muito insólito. Mais estranho ainda foi o rapaz que conheceu.
Um rapaz pálido, com ares vampirescos. Cabelos escuros, pele pálida, olhos baços, o moço era sério, diferente de seus colegas de escola. E mais velho também. Ela ficou impressionada com a delicadeza do moço. Em vez de agarrá-la como seus colegas de escola, conversou com ela, buscou-lhe bebida, preocupou-se com ela.
Ficaram próximos todo o tempo e beijaram-se com delicadeza.
Perto da meia-noite a garota decidiu voltar para casa. O rapaz, gentilmente, ofereceu-se para acompanhá-la. A garota aceitou, mas explicou que ele só poderia ir até parte do caminho porque estava ali sem o consentimento dos pais.
Durante o caminho conversaram pouco. A garota, cautelosa, decidiu não dar muitos dados de si. O rapaz era lacônico por natureza. Caminharam quase em silêncio quando ele a convidou para ir ao seu apartamento ali perto. Prometeu respeitá-la, nada fazer que ela não desejasse. A garota teve medo, mas o desejo pelo desconhecido foi maior.
Ao entrar no apartamento, bateu-lhe no rosto um cheiro estranho, adocicado e quase indefinido: seria lixo em decomposição? Parecia algo apodrecendo, o que seria? O rapaz alojou-a no sofá da sala e desapareceu alguns minutos dizendo que ia a cozinha pegar algo para beber. A garota olhou o apartamento e começou a sentir medo. Um medo inexplicável fazia o seu coração bater forte, a respiração ficar ofegante e ela sentia bolhas fazendo festa no seu estômago.
O sábio medo dizia à garota para sair correndo dali, mas ela estava paralisada. O rapaz voltou da cozinha com dois copos e lhe disse para nada temer que era apenas refrigerante. A garota constatou o gosto de Coca-cola, mas algo lhe dizia para beber bem devagar e de preferência não tomar tudo.
Ao primeiro gole a cabeça começou a rodar. Rodava tanto que ela achou que viu o rapaz rindo, gargalhando e seu rosto todo se deformava em uma máscara monstruosa. De repente, ela viu (teria visto? Tudo rodava...). Um armário na parede, a porta abriu-se (sozinha?). Vários corpos caíam de lá, corpos nus de garotas jovens, todas aparentando quinze anos, todas parecidas com ela, de cabelos escuros longos, magrinha, seios pequenos. Ela abriu a boca para começar a gritar, mas o grito não saía. O rapaz vinha em sua direção. Ela levantou-se e saiu correndo, a porta estava destrancada, conseguiu encontrar a escada e descer correndo, na maior velocidade que pode, sempre olhando para ver se o rapaz a seguia...Mas não, não havia ninguém atrás dela.
Alcançou a rua e continuou correndo, desesperada, a cabeça rodando. Na rua, a escuridão, a neblina, fazia com que a situação ficasse ainda mais assustadora. Correndo, trôpega, conseguiu chegar ao metrô onde havia outras pessoas e ela se sentiu um pouco mais segura. O trem chegou e ela entrou, tremendo.
Acordou em sua cama quentinha, segura, limpinha. O medo lhe fez dar um salto.

domingo, 28 de junho de 2009

AMAMENTAR É UM ATO DE AMOR

Em 1999 Pedro Almodóvar, cineasta espanhol, entregou ao mundo seu filme "Tudo sobre minha mãe", uma bela homenagem às mulheres e às mães. Sua personagem principal, Manuela, é uma mulher de 38 anos que perde seu único filho, no dia em que ele estava completando 17 anos, em um acidente de carro. Ela faz uma longa trajetória para encontrar o pai do seu filho depois do acidente.Manuela havia prometido contar tudo sobre o pai para Estéban, seu filho e iria fazê-lo no dia de seu aniversário, dia fatal em que ele sofre o acidente.Manuela é enfermeira de um hospital e trabalha no setor de doação de órgãos. Por ironia do destino terá que decidir a doação do jovem coração de seu filho. O que mostra o filme em seguida é de uma beleza imensa: Manuela é toda doação e amor. O que mais me chama a atenção nessa linda personagem é que ela é incapaz de odiar, nem mesmo a pessoa que é responsável pelo acidente de seu filho. Com esses gestos de amor ela vai dando lições a todos que a circundam. Não foi à toa que esse filme ganhou o Óscar de melhor filme estrangeiro em 2000, tornando Almodóvar conhecido no mundo todo.
Estamos falando de amamentação e o que teria um filme de Almodóvar a ver com isso? Primeiro, o filme fala de mães. Segundo, de doação. E amamentar é um grande ato de doação. Tanto que algumas mães com filhos indesejados não conseguem amamentá-los. Esse ato torna-se sofrido para elas, passam a alegar que estão com falta de leite, que seu leite está fraco, que os seios doem. Não podemos culpá-las, nem criticá-las, porque é doloroso e sofrido para a mulher ter filhos sem o desejar, às vezes em condições muito difíceis, sem apoio de um companheiro ou da família.
Por isso que alguns hospitais e entidades fazem campanhas para que as mães amamentem seus filhos. A ciência já comprovou os benefícios da amamentação: previne doenças, melhora o estado geral da criança, além de aumentar o vínculo afetivo entre a mãe e a criança. Além disso, ainda previne cáries, melhora a capacidade de fala porque fortalece os músculos do maxilar e prepara o terreno para que a criança se torne um adulto mais feliz.

Parece óbvio que as mães amamentem seus filhos já que somos mamíferos. Mas, quando a industrialização se expandiu no Brasil, a Nestlé fez campanha contra esse ato tão normal quanto maravilhoso. Alegava que caía os seios, que o leite da mãe era fraco, entre outras propagandas subliminares que apareciam em revistas e TV. Na época, eu tive minha primeira filha, em 1977. A cada vez que a traziam para mim no hospital diziam que ela já tinha mamado. Eu era jovem, não sabia de muita coisa sobre bebês e não contestava. Quando voltei para casa e tentei dar de mamar, ela não queria, só chorava e não mamava. Pudera, já estava acostumada ao bico, coisa que hoje os médicos abominam. Resultado: compramos mamadeiras e leite Ninho, é claro.
A minha sobreviveu, felizmente. Mas várias crianças da idade dela ou mais velhas morreram de desidratação e infecções intestinais várias. Porque o leite Ninho era muito forte e caro. As mães nem sempre tinha dinheiro para comprá-lo. Colocavam uma colherinha de leite em 200 ml de água, o que o deixava muito mais fraco que o leite materno. Em alguns casos a água nem era filtrada ou fervida. Infelizmente, conheço muitas pessoas, parentes e conhecidas, que perderam seu filho bebê nessas condições horríveis. Mas o silêncio sobre essa questão foi total. Nunca vi nada na imprensa e nem nenhum estudo sobre o caso, um verdadeiro genocídio.
Nos anos 80, começou a campanha pelo aleitamento materno. Tudo mudou de figura: amamentar passou a ser um gesto de amor e foi totalmente romantizada em linda campanhas que perduram até o momento. Falava-se muito timidamente sobre o alto índice de mortalidade infantil que a amamentação poderia ajudar a evitar. No nascimento de minha segunda filha, em 1981, já não se cogitava mais dar mamadeira. Hoje, as minhas filhas amamentaram seus filhos sem a menor dúvida. Felizmente.











Aqui a Michele amamentando o Othon, seu primeiro e único filho, hoje com sete anos





Amamentar é natural, é bom, é um ato de amor.
No link abaixo, informações sobre como ajudar a mães:

A CAIXA DE PANDORA


imagem do site:
http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2008/01/11_1329-pandora1.jpg

A CAIXA DE PANDORA

O quarto escuro. O cigarro aceso. O medo. De quê? De tudo, de não sei que. O medo dói. E a dor doía fundo nele. Mas ele escondia a dor. Dentro de uma caixinha bem cerrada. Ninguém chegava lá, nem ele. Mas de vez em quando a caixinha se abria. E envenenava tudo. Aí, o som era de dor, o riso era de dor, o prazer era só dor. Mas ele lutava para manter a caixinha bem cerrada. Fazia de tudo para parecer alegre. Mas a alegria doía. Era de mentira, fabricada por coisas extrarreais e substâncias tóxicas que envenenavam o corpo. Mais que a dor.
Às vezes a dor escondida até que ficava quietinha um pouco lá dentro e ele parecia quase feliz. Parecia acreditar. As portas do prazer se abriam, a percepção ficava forte. A esperança surgia. Mas não durava. Algo fazia a maldita caixa se abrir de novo e tudo se perdia.
Ah, a dor. Dentro da caixa de Pandora ficava. Mas abria. Abria e fechava. Era cruel. Ele sabia que precisava soltá-la para que junto também saísse a esperança. Mas tinha medo. Ela era muito forte, essa dor. E se ele sucumbisse? Não, não. Nem pensar. Deixa ela lá, presa. Vai que junto com ela vem também o mal e então o que faço? Mas era tão terrível guardar essa dor!
Então ele foi para o alto da montanha. Contemplou o pôr-do-sol, viu nascer as estrelas, olhou o mar lá embaixo, as árvores. Tudo era tão bonito! Ele não aguentou. Começou a chorar. Depois a gritar. Gritou tanto e o mais alto que pode. Até que uma luz surgiu em seu peito e se expandiu para o resto do corpo. Atravessou-o todo e ele se sentiu derretendo. Foi quando viu que não era mais ele. Tinha se fundido às pedras e chovido toda a dor do mundo.
(16/02/2001)

domingo, 14 de junho de 2009

O CÉREBRO ELETRÔNICO E AS RELAÇÕES

CÉREBRO ELETRÔNICO
(GILBERTO GIL)
O cérebro eletrônico faz tudo
Faz quase tudo
Faz quase tudo
Mas ele é mudo
O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar
Se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar
Quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões
De carne e osso
Eu falo e ouço.
Eu penso e posso
Eu posso decidir
Se vivo ou morro por que
Porque sou vivo
Vivo pra cachorro e sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
No meu caminho inevitável para a morte
Porque sou vivo
Sou muito vivo e sei
Que a morte é nosso impulso primitivo e sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro

No dia 13 de setembro de 2008 fui visitar a exposição Emergência! Emoção art.ficial 4.0 no Itaú Cultural que foi indicada pelo professor Ênio Moraes.
Convidei a minha amiga Luciana, que não via há um ano já, para ir comigo e depois iríamos conversar e passear pela avenida Paulista.
Nesse tempo em que estivemos longe mantivemos nosso contato pelo espaço cibernético, a internet. E, quando nos encontramos, parecia que tínhamos acabado de nos ver no dia anterior.
Foi uma sensação interessante entrar nessa exposição, principalmente quando tem um tema como esse em que une arte e tecnologia: à primeira vista as coisas pareciam não fazer sentido. Tudo parecia um amontoado de circuitos e eu me perguntava: cadê a arte? Aquelas coisas seriam arte? E que tipo de arte?
O meu cérebro está acostumado a ver as coisas de forma linear, por isso demorou a entender a proposta interativa da exposição. No começo só vi um monte de máquinas e uma parafernália que para mim nada parecia ter a ver com arte.Mas aos poucos fui me inteirando do assunto e pensando bastante sobre a questão que se colocava na exposição, a emoção art.ficial.
Minha amiga é do signo de Peixes, elemento água que tem como característica a emoção. Eu, como virginiana, sou racional. Isso faz a nossa relação mais completa. Enquanto que eu só via a parte eletrônica e aquilo para mim em nada se parecia com arte, a minha amiga foi observando a parte que sobressaía das máquinas estabelecendo relações.
Tumbling Dream Chambers

A primeira relação que ela estabeleceu foi com os espelhos. Os quadros redondos da obra Tumbling Dream Chambers lhe pareceu espelhos. A monitora explicou que eram ambientes virtuais. Para mim pareciam céus estrelados. Duas amigas me chamaram para ver uma sala em que podíamos interagir com sons e depois ver e ouvir livros. O professor Ênio nos mostrou as esculturas musicais, feitas a partir da impressão material de uma música. Nesse momento falamos dos espelhos.
Procuramos espelhos em tudo. Na arte, no mundo, nos amigos. Seremos narcisistas?
Narciso se afogou nas águas em que se mirava. Corremos também esse risco?
Foi nesse momento que entendi o que estava fazendo ali, por que convidei minha amiga e por que conversava com colegas de turma e o professor. Se eu estiversse sozinha, sentiria falta dessa interlocução que me fez pensar. Refletiria sobre o que via, mas me sentiria muito só.
Ali naquele momento redescobri a importância das relações, as humanas, as afetivas, as que temos com nossos espelhos que nos mostram quem nós somos. E ficou muito mais clara para mim a importância da arte: ela mostra nosso lado mais humano. Ficou claro também que por trás do cérebro eletrônico tem o cérebro humano.
Para pensar, deixo aqui as palavras de Leonardo Boff:
"Construímos o mundo a partir de laços afetivos. Esses laços tornam as pessoas e as situações preciosas, portadoras de valor e infinitamente adoráveis.
Nenhuma máquina, nenhum computador (nem o mais inteligente) pode fazer isso. Eles não estendem o braço e nos tocam carinhosamente, nem choram com nossos infortúnios.
O ser humano, sim, porque ele tem um coração que sente a chaga do coração do outro e sabe compadecer-se dele. " (Fonte: FOLHETO do projeto Revelando São Paulo)

COMUNICAÇÃO





















COMUNICAÇÃO


(Luis Fernando Veríssimo)


É importante saber o nome das coisas. Ou, pelo menos, saber comunicar o que você quer. Imagine-se entrando numa loja para comprar um... um... como é mesmo o nome?
"Posso ajudá-lo, cavalheiro?"
"Pode. Eu quero um daqueles, daqueles..."
"Pois não?""Um... como é mesmo o nome?"
"Sim?""Pomba! Um... um... Que cabeça a minha. A palavra me escapou por completo. É uma coisa simples, conhecidíssima."
"Sim senhor."
"O senhor vai dar risada quando souber."
"Sim senhor."
"Olha, é pontuda, certo?"
"O quê, cavalheiro?"
"Isso que eu quero. Tem uma ponta assim, entende? Depois vem assim, assim, faz uma volta, aí vem reto de novo, e na outra ponta tem uma espécie de encaixe, entende? Na ponta tem outra volta, só que está e mais fechada. E tem um, um... Uma espécie de, como é que se diz? De sulco. Um sulco onde encaixa a outra ponta, a pontuda, de sorte que o, a, o negócio, entende, fica fechado. É isso. Uma coisa pontuda que fecha. Entende?"
"Infelizmente, cavalheiro..."
"Ora, você sabe do que eu estou falando."
"Estou me esforçando, mas..."
"Escuta. Acho que não podia ser mais claro. Pontudo numa ponta, certo?"
"Se o senhor diz, cavalheiro."
"Como, se eu digo? Isso já é má vontade. Eu sei que é pontudo numa ponta. Posso não saber o nome da coisa, isso é um detalhe. Mas sei exatamente o que eu quero."
"Sim senhor. Pontudo numa ponta."
"Isso. Eu sabia que você compreenderia. Tem?"
"Bom, eu preciso saber mais sobre o, a, essa coisa. Tente descrevê-la outra vez. Quem sabe o senhor desenha para nós?"
"Não. Eu não sei desenhar nem casinha com fumaça saindo da chaminé. Sou uma negação em desenho."
"Sinto muito."
"Não precisa sentir. Sou técnico em contabilidade, estou muito bem de vida. Não sou um débil mental. Não sei desenhar, só isso. E hoje, por acaso, me esqueci do nome desse raio. Mas fora isso, tudo bem. O desenho não me faz falta. Lido com números. Tenho algum problema com os números mais complicados, claro. O oito, por exemplo. Tenho que fazer um rascunho antes. Mas não sou um débil mental, como você está pensando."
"Eu não estou pensando nada, cavalheiro."
"Chame o gerente."
"Não será preciso, cavalheiro. Tenho certeza de que chegaremos a um acordo. Essa coisa que o senhor quer, é feito do quê?"
"É de, sei lá. De metal."
"Muito bem. De metal. Ela se move?"
"Bem... É mais ou menos assim. Presta atenção nas minhas mãos. É assim, assim, dobra aqui e encaixa na ponta, assim."
"Tem mais de uma peça? Já vem montado?"
"É inteiriço. Tenho quase certeza de que é inteiriço."
"Francamente..."
"Mas é simples! Uma coisa simples. Olha: assim, assim, uma volta aqui, vem vindo, vem vindo, outra volta e clique, encaixa."
"Ah, tem clique. É elétrico."
"Não! Clique, que eu digo, é o barulho de encaixar."
"Já sei!"
"Ótimo!"
"O senhor quer uma antena externa de televisão."
"Não! Escuta aqui. Vamos tentar de novo..."
"Tentemos por outro lado. Para o que serve?"
"Serve assim para prender. Entende? Uma coisa pontuda que prende. Você enfia a ponta pontuda por aqui, encaixa a ponta no sulco e prende as duas partes de uma coisa."
"Certo. Esse instrumentos que o senhor procura funciona mais ou menos como um gigantesco alfinete de segurança e..."
"Mas é isso! É isso! Um alfinete de segurança!"
"Mas do jeito que o senhor descrevia parecia uma coisa enorme, cavalheiro!"
"É que eu sou meio expansivo. Me vê aí um... um... Como é mesmo o nome?"...
(Fonte: VERÍSSIMO, Luis Fernando. Comunicação. In: PARA gostar de ler, v.7. 3.ed. São Paulo: Ática, 1982. p. 35-37.) )

Encontre nessa foto três símbolos de poder.
Observe bem. São poderes simbólicos e ideológicos. As pessoas nem percebem que são dominadas.

domingo, 24 de maio de 2009

O SONHO

O sonho


Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance de fazer aquilo que quer.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos.
A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas.
















CLARICE LISPECTOR (ACHEI NA NET COMO DE AUTORIA DELA, MAS NÃO TENHO CERTEZA)

domingo, 17 de maio de 2009

ANÁLISE DA MÚSICA PAIS E FILHOS

PAIS E FILHOS
E A FRAGMENTAÇÃO DO SUJEITO







Veja o clipe da música aqui nesse link:



http://www.youtube.com/watch?v=Zr66vNx-tZQ


Fiz um trabalho para o curso de Linguística Textual sobre coesão textual e analisei a música Pais e filhos da banda Legião Urbana. Resolvi postar aqui por sugestão do meu filho que afirmou gostar ainda mais da música depois de ler a análise.
A música “Pais e Filhos”, da banda Legião Urbana está no CD “As quatro estações”, que foi lançado em 1989. Pais e filhos é a segunda faixa e uma das que mais fizeram sucesso. O álbum do grupo que alcançou maior vendagem foi "As Quatro Estações" de 1989. O disco teve 1,350 milhões de cópias vendidas.
Pensemos a princípio na questão da tipologia e gênero textual. É uma letra de música e portanto um poema com doze estrofes, dividido em cinqüenta e quatro versos livres. O tamanho das estrofes é irregular: temos estrofes de três versos e a mais longa de oito versos.
O poema possui traços de narração e argumentação.
Como poema o texto possui rimas: na terceira estrofe há a rima de agora com fora; na quarta, de vocês com três; na oitava estrofe, há a rima de visitar com lugar; na nona de mais com pais. No entanto, podemos notar que as rimas são ocasionais e não era o objetivo do poeta, pois o ritmo é mais importante que a rima, dentro desse texto.
O que chama a atenção nessa letra é a aparência de caos: não há um encadeamento e nem coesão textual à primeira vista. Então não seria um texto? Porém, debruçando-se mais profundamente, podemos recuperar o sentido do texto.
Na primeira estrofe podemos dizer que há uma voz narrativa, ou seja a voz do narrador que enumera elementos.

Estátuas e cofres
E paredes pintadas
Ninguém sabe
O que aconteceu...

Nessa fala aparece uma pessoa pessoa do sexo feminino que identificamos pelo pronome “ela”, mas que não recupera nenhum elemento anterior do texto:
Ela se jogou da janela
Do quinto andar
Nada é fácil de entender...
Podemos inferir aqui uma situação narrativa: alguém se jogou do quinto andar do prédio e era uma mulher, mas não sabemos quem é, há apenas a perplexidade do narrador: nada é fácil de entender.
Na terceira estrofe aparece a voz de alguém que poderíamos inferir de um adulto acalentando uma criança:
Dorme agora
É só o vento
Lá fora
Nessa estrofe aparecem a voz de pessoas que podemos inferir como crianças e adolescentes de várias idades.
Quero colo!
Vou fugir de casa
Posso dormir aqui
Com vocês
Estou com medo
Tive um pesadelo
Só vou voltar
Depois das três...
Na quinta estrofe aparece a fala de um pai ou de uma mãe:
Meu filho vai ter
Nome de santo
Quero o nome
Mais bonito...
O texto pode ser um diálogo, ou pode ser a mesma pessoa afirmando.


Pode ser um pai ou uma mãe.
A sexta estrofe é o refrão da música que depois é repetida.
Aqui temos uma voz poética fazendo uma admoestação:
É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Por que se você parar
Pra pensar
Na verdade não há...
Na sexta estrofe há falas de pais e de filhos:
Me diz, por que que o céu é azul
Explica a grande fúria do mundo
Essas falas remetem à criança que está na fase dos “porquês”, com a necessidade de entender o mundo.
Essa voz é de um pai ou de uma mãe e remete ao desamparo:
São meus filhos
Que tomam conta de mim
Aqui temos vozes de filhos, talvez crianças, mostrando a separação dos pais, pessoas que não têm casa e outras que vivem mudando de família. Depois dessa fala há a repetição do refrão, o que remete à idéia de desamparo e desagregação das relações.
Eu moro com a minha mãe
Mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua
Não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar...
Já morei em tanta casa
Que nem me lembro mais
Eu moro com os meus pais
Nas últimas estrofes aparece a voz de um narrador que também argumenta e coloca sua visão, que somos uma gota d’água ou um grão, mostrando nossa pequenez diante do mundo.
A fala final faz uma crítica ao fato de haver cobrança em relação aos pais: será que os pais também não precisam ser entendidos? Será que seriam heróis ou que também não teriam suas fragilidades?A frase final “o que você vai ser quando você crescer” pode ser entendida como uma pergunta ou como afirmação. Se for como pergunta revela a intenção de perguntar será que você não vai ser como seus pais? E se for uma afirmação, a voz poética pode estar afirmando que vamos sempre repetir os nossos pais.
Sou uma gota d'água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais
Não o entendem
Mas você não entende seus pais...
Você culpa seus pais por tudo
Isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer?
Podemos inferir que o poeta mostrou nessa música poema as contradições do mundo moderno: as relações fragmentadas, o desamparo do sujeito. Essa fragmentação se dá tanto na forma como no conteúdo, com as vozes colocadas no texto. Parece que há uma câmera filmando grupos de pessoas falando e ele registra essas vozes da forma como aparece.
A fala do narrador, a voz poética organiza esse aparente
caos e dá sentido a ele, questionando a postura do filho que culpa o pai, mostrando que somos humanos, pequenos diante da realidade.
Considerando que foi escrito em 1989, o texto mostra um pouco dessa fase, considerada a “década perdida” porque tínhamos recém saídos de uma ditadura militar com uma estagnação da economia e refluxo dos movimentos estudantis e populares.
É nessa época, na música “quando o sol bater na janela do seu quarto”, que ele pergunta:
“Até bem pouco tempo atrás poderíamos mudar o mundo. Quem roubou nossa coragem?”
O texto não possui coesão no sentido que um elemento recupera o outro, mas a partir de aspectos semânticos.



ANÁLISE DA MÚSICA PAIS E FILHOS

Fiz um trabalho para o curso de Linguística Textual sobre coesão textual e analisei a música Pais e filhos da banda Legião Urbana

sexta-feira, 1 de maio de 2009




Baladilha

Morre o boi
Quando chega ao fim
A paciência bovina
De mascar capim,
De puxar o carro,
De servir ao homem
Que o mata e come.
Morre o cão
No meio da rua
Sob a luz da lua
A que tanto uivou.
Guardou fielmente
O celeiro do homem,
Mas morreu de fome.

Morre o pássaro
Dentro da gaiola
Quando é noite e o canto
Já não o consola.
Pela última vez
Canta para o homem
Que, embora livre, dorme.

Envoy:
Homem, não sejas
Pássaro nostálgico,
Cão ou boi servil.
Levanta o fuzil
Contra o outro homem
Que te quer escravo.
Só depois disso morre.

José Paulo Paes

quarta-feira, 8 de abril de 2009




MOMENTOS NO TEMPO

Jamais esquecerei
Estes momentos
Soltos no espaço
E no tempo
Em que estivemos juntos
No Paraíso
Banhados pela luz cósmica
Numa imensa troca de energia

Ah, que momentos preciosos!
Cheios de emoção e magia
Em que a vida se fez presente
Num grito de euforia!

Momentos em que o tempo
Deveria parar.
Mas, que ironia!
São nestes momentos
Que não o vemos passar.









domingo, 8 de março de 2009





UM CONTO DE FADAS MODERNO

Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho, deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu o seu anel de diamante ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margaridas. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse:- Agora me lembro, não era um homem, mas dois.E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem, e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse:- Então está com o terceiro!Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram, e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para espanto dela.- Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo e a deixou desfalecida – gritaram os aldeões. – Matem-no!- Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. – Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu!E apontou a donzela, diante do escândalo de todos.O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como ele era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo: “Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará o seu amor.” E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra.Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura! Diaba!” e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço.Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:- A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira, e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?O pescador deu de ombros e disse:- A verdade é que eu achei este anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.(LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO)


Os indiferentes
por Antonio Gramsci


Odeio os indiferentes.
Acredito que viver
significa tomar partido.

Indiferença é apatia,
parasitismo, covardia.
Não é vida.

Abomino os indiferentes.
Desprezo os indiferentes,
porque me provocam
tédio as suas lamúrias
de eternos inocentes.
Odeio os indiferentes!


MAMÃE NÃO FAZ NADA



Era uma vez uma mulher que perdeu seu nome de batismo ou melhor trocou-o por outro muito usado: o de mãe. Sendo mãe tornou-se uma pessoa essencialmente chata. A maior cobradora da paróquia. Faça isso; faça aquilo...
O relógio toca. Começa a batalha.- Vamos acordar, pessoal !!!Corre liga a água para o café. O leite também (quando tem)...- Vamos crianças, vistam o uniforme!O pai já está no banho. Rápido. Tem aula. Côa o café. Serve a mesa. Vamos pessoal. Olhe a hora. Coma o pão. Escovem os dentes. Pronto. O marido foi para o trabalho e as crianças para a escola. Trocou de roupa. Tirou a mesa, limpou a mesa do café. Arrumou as camas. Varreu a casa. Retirou o pó dos móveis.Vai ao verdureiro. Feitas as compras corre ao açougue. aproveita a saída passa pelo banco paga as contas de água e luz. Volta correndo. Faz o almoço. Olha o relógio. Está na hora do marido e das crianças chegarem... Chegaram. Serve o almoço. - Menino não belisque sua irmã!O pai pede que lave o macacão. Conta que hoje o trabalho melhorou um pouco, mas é para cuidar das despesas. Breve repouso e volta ao serviço. A mãe lava a louça do almoço. A filha seca os pratos e o filho os talheres, ele se manda para o quintal. O cachorro aparece com os pêlos da cauda bem aparados.- Esse menino! Foi por isso que ele pegou a tesoura...- Crianças façam a lição.Sim. Claro, arranjar figuras para a tarefa de geografia. Costurar a barra da calça do menino. Pregar o botão da blusa da menina.- Mãe, amanhã é aniversário da professora. Tenho que levar um bolo.Pronto. O bolo está no forno. Enquanto assa, lava o macacão.- Vamos ao dentista.- Cuidado ao atravessar a rua.Passam na panificadora. Voltam para casa.- Tomem banho!Providenciar o jantar.- Não gosta de ovo? Tem que comer. Faz bem para a saúde.- Fiquem quietos. Deixem o papai assistir o noticiário sossegado. Ele está cansado. Trabalhou o dia todo.- Vão para o banho! Já arrumaram o material para a aula de amanhã? Mas que turma!- Desde que chegamos do dentista estou dizendo para irem para o banho. Todos deitados.
Verificação total da casa. Deixar a mesa arrumada para o café matinal.- Ora veja! O menino esqueceu de guardar o caderno.Abriu-o, deu uma olhada na lição. Ele preencheu uma folha com dados pessoais:nome completo, data de nascimento, local e também dados familiares.Profissão do pai: mecânico.Profissão da mãe: não faz nada, só fica em casa.
(Autor Desconhecido