domingo, 26 de outubro de 2008

O CÃO


O CÃO

O cão arreganhava os dentes diante do portão da enorme mansão. O enorme cão cinza de olhos claros parecia querer abocanhar o primeiro que aparecesse para invadi-la. Olhava os passantes com raiva por trás das grades do portão. O seu problema era ser animal. Foi especialmente preparado para defender a propriedade privada. Desde pequenininho davam-lhe um prato de comida e outras recompensas sempre que fazia a coisa certa. O bom e velho Pavlov tinha razão ao desenvolver a teoria do condicionamento. Realmente, o tal estímulo-resposta funcionava mesmo!
Era um cão treinado. Fosse um lobo e agiria apenas por instinto e não olharia as pessoas com tanto ódio. Ódio que lhe fora ensinado por seus donos, pessoas de muitas posses. Por isso, tinham medo de perdê-lo e ensinaram-lhe a cuidar de sua propriedade com zelo como se ela fosse sua. Ensinaram-lhe a ter raiva de pobres, pretos, pedintes, mendigos, molambos. Ensinaram-lhe a odiar qualquer ameaça a seu mundo cor-de-rosa.
Sempre que aprecia no portão um ser estranho, ele atacava. Sabia identificar pelo cheiro as pessoas amigas. Geralmente, usavam perfumes franceses e tinham caras iguais, bem cuidadas. Ele via aquelas caras sorridentes, algumas cheias de maquiagem e estava acostumado com elas. Detestava as empregadas, jardineiros e os mordomos. Se pudesse pensar, talvez entendesse essa sua raiva. Estas pessoas lembravam-lhe a sua condição de subserviência, o que o deixaria profundamente irritado. Mas, naturalmente, não pensava. Animais não pensam.

Um dia, esqueceram o portão aberto e ele escapou. No início, bebeu o ar da liberdade. Correu, chafurdou na lama e revirou latas de lixo junto com seus velhos companheiros de espécie. Brigou, latiu para a lua, namorou muitas cadelas...
Mas...Se cansou da liberdade. Não tinha nascido livre, não tinha crescido livre. Toda sua vida viveu recebendo ordens. Quando saiu de casa, esperava que alguém o procurasse. Queria gozar ao máximo o tempo livre que tinha e pretendia voltar assim que fosse encontrado. Ele sabia que era um cão de raça que custava caro, por isso acreditou que seria procurado e encontrado. Andou perto da casa e teria voltado se não tivesse encontrado o portão fechado.
Não foi encontrado. Rondou em volta da casa, acabrunhado, arrependido de ter fugido, deprimido mesmo, com o rabo entre as pernas até que viu outro cachorro no quintal, naquele quintal que fora seu um dia! a dor foi muita e ele ganiu. Choraria se soubesse chorar, mas era apenas um animal sem valor que podia ser substituído por quem possui muito dinheiro. Que faria agora? Qual seria o rumo de sua vida? Ele se perguntaria se entendesse o que estava acontecendo. Mas era apenas um animal. Não sabia pensar.
Como um cão vira-latas, vagou, vagou e vagou, só e abandonado. Comia restos e sentia saudades do tratamento que tinha na casa dos ricos. Tinha cama boa, comida boa, não tomava chuva, não passava frio e só tinha que pagar por isso cuidando da casa deles, não deixando aqueles estranhos entrar. Estes seres com quem agora tinha que conviver e repartir a comida, seres nojentos que as vezes acariciavam-lhe, outras maltratavam-lhe. Não gostava deles, queria o cheiro de perfume francês da mansão rica, tinha nojo do mau-cheiro dos pobres. A que ponto chegara! Pensaria, se pudesse pensar. Mas era animal. E animal não pensa.

E assim ele vagou por muito tempo sofrendo inúmeras privações. Até que um dia foi encontrado. Não pela família anterior, como ele esperava, mas por um rapaz tão só e abandonado como ele. O rapaz morava sozinho numa casa de um só cômodo num bairro sujo e fedorento da periferia. Não era a mesma coisa, mas já era algum conforto.
Tinha agora o que comer e onde dormir sem passar frio. Mas não se sentia agradecido ao rapaz. Achava que ele tinha feito sua obrigação, portanto não lhe fazia festinhas quando ele chegava, nem lhe balançava o rabo, nem mesmo quando era acariciado. Se pudesse raciocinar, acharia que ele apenas queria companhia e pagava por isto dando-lhe casa e comida. Mas não pensava, não era humano.
O rapaz estava desempregado e saia todos os dias à procura de emprego. Até que soube de um concurso para a Polícia Militar. Prestou-o e passou. Sabendo que o seu cão era de raça resolveu leva-lo para os treinamentos. O cão e o rapaz foram bem aceitos pela polícia pois os dois eram cumpridores dos deveres e capaz de submeterem à disciplinas rígidas.
O cão logo engordou e ficou mais ágil, seu dono também. A sua cor cinza e o uniforme de seu companheiro, agora um soldado da PM, quase que se confundiam. Sabiam que tinham nascido para este trabalho.
O cão e seu companheiros policiais adoravam maltratar mendigos, pobres, pretos, molambos, crianças pedintes e casais de namorados. Ele percebeu que tinha ido ao lugar certo e chegou quase a ter amizade por seu dono, o rapaz que o tirou das ruas e o levou para ser um cão da polícia militar. Mas não podia sentir estes afetos, era apenas um animal.
Agora, sentia-se quase feliz com seu trabalho, tão parecido com o anterior, de proteger a propriedade alheia. O rapaz, com seu salário e apenas os dois para sustentar, já comia melhor. Havia até carne! Haviam se mudado para uma casinha maior e mais confortável e à noite ele dormia sonhando com perfumes franceses. (1995)

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